Ricardo Garcia é jornalista do Público desde a sua fundação, em 1989. Neste jornal, tem escrito sobretudo sobre ambiente e chegou a ser premiado pelos seus trabalhos na área das alterações climáticas e do protocolo de Quioto. Há um ano, lançou o livro “Sobre a Terra”, um guia para quem lê e escreve sobre ambiente, e é um dos fundadores da recém-criada Associação de Repórteres de Ciência e Ambiente (ARCA).
Entrevista a Ricardo Garcia, jornalistaQuercus Ambiente - Como é que um jornalista acaba por se dedicar a escrever sobre ambiente? No início, quando começou a colaborar com o Expresso, fazia um trabalho generalista... Ricardo Garcia - Fazia um trabalho generalista, comecei por propor temas em geral, até que uma vez propus uma coisa sobre ecologia. Foi na altura da guerra dos eucaliptos, em que a Quercus começou a fazer aquelas acções mais espectaculares, quando se amarravam aos buldozzers. Então propus fazer uma reportagem sobre as associações ambientalistas, e acho que foi a partir daí. Nessa altura não havia muita gente a escrever sobre ambiente. E a partir dessa reportagem eu comecei a receber telefonemas de associações, que me começaram a passar informações. Tinha chegado nessa altura do Brasil. Já havia gente que escrevia sobre temas ambientais, como o Humberto Vasconcelos, no Diário de Notícias, ou o José Manuel Fernandes, no Expresso. Comecei a ter mais contactos com as associações e a ver que havia motivos de notícia a explorar, e de que eu gostava.
Na altura apercebeu-se de que o ambiente era uma área bastante técnica? Sim, mas não me assustava muito. Porque eu já tinha uma formação, sou licenciado em história, mas também fiz dois anos de engenharia, portanto sei fazer algumas contas de somar e dividir. (risos)
No jornalismo existe aquela velha discussão: se o jornalista deverá ser um especialista que sabe escrever, ou se deve ser um jornalista que acaba por se especializar numa determinada área... A especialização é uma faca de dois gumes. Se for muito especializado em determinado campo do jornalismo, seja justiça, ou ambiente, corre o risco de ficar fechado naquele mundo e de acabar por conseguir apenas comunicar com as pessoas do meio. Eu acho que a especialização não deve ser um objectivo. O jornalista deve ser especialista em fazer perguntas, isso sim. É uma coisa que acontece com o tempo. Acaba por se ficar especializado pela prática. Mas acho que nunca se deve perder de vista o que é o jornalismo em geral. E dentro dessa área pode-se ir desenvolvendo, frequentando cursos... mas um jornalista que vai escrever sobre ciência não tem de ser cientista.
Em Portugal não existem muitos cursos de formação para jornalistas. Não existe quase nada. No passado, o Centro de Formação para Jornalistas (Cenjor) fez cursos na área do ambiente, e eu próprio organizei um com o Instituto de Promoção Ambiental (IPAMB), mas tirando esses, que foram pontuais, hoje em dia não há praticamente nada.
Tal como diz no livro “Sobre a Terra”, o interesse dos meios de comunicação social sobre o ambiente tem fases. Teve a fase dos eucaliptos, teve a fase das chuvas ácidas, qual é que estamos a viver agora? A do Protocolo de Quioto? É a fase do protocolo de Quioto, porque é um assunto que está na ordem do dia. E infelizmente vai voltar a fase da co-incineração, embora actualmente não seja já um debate ambiental, mas político. Mas isso só demonstra que andamos a seguir mais ou menos as coisas que aparecem no topo da agenda. Difícil é encontrar tempo e disponibilidade e interesse dos próprios editores para fazer alguns trabalhos que não sejam de actualidade. Digo isso de uma forma geral, porque aqui no “Público” há espaço para cada qual desenvolver o que quiser.
No dia-a-dia do trabalho no jornal o jornalista Ricardo Garcia ainda tem de convencer os editores da importância dos temas? Acho que aqui nunca houve isso. É um caso especial. Temos um director que foi jornalista de ambiente, há vários jornalistas aqui que tratam de ambiente e ciência. É um jornal que no início apostou muito na secção de ciência e ambiente. Às vezes não temos todo o espaço que gostaríamos, mas acho que o “Público” sempre teve uma posição espectacular nesse aspecto, o que coloca muito mais a responsabilidade sobre os jornalistas. Se não fizermos as coisas não é porque eles não deixaram, é porque não quisemos.
Uma notícia de ambiente é muitas vezes um exercício didáctico. Até que ponto é que ela pressupõe um espírito de missão por parte do jornalista? É. Não podemos pensar que a função de um jornal é educar. Mas quando se traduz um assunto complexo numa linguagem mais simples está-se a cumprir essa função, no fim de contas. Não se pode é perder de vista que um jornal vive de notícias. É o ponto de partida. Se através da notícia conseguir educar as pessoas sobre determinados temas, melhor ainda.
Sente que tem uma missão? Não. Isso seria pressupor que um jornalista é também um activista ambiental. Eu sou um jornalista. É claro que como cidadão tenho as minhas convicções. Não coloco essa “missão”, de através do jornalismo defender o ambiente, em primeiro plano. Eu defendo o ambiente em tudo, na minha casa, no jornal, de acordo com a minha consciência mas em diversos domínios da minha vida.
Em que medida é que o facto da comunicação social tratar temas como o protocolo de Quioto tem reflexos na condução das políticas públicas de ambiente? Na política nacional certamente que tem influência. Muitas vezes a opinião pública reage quando é publicada uma notícia sobre algo. Isso cria uma responsabilidade acrescida ao jornalista. Ao escrever uma notícia podemos estar a despertar a opinião pública num determinado sentido. E por isso deve-se ser muito criterioso naquilo que se escreve e nos títulos que se escolhe. No ambiente e na saúde sobretudo, acontece por vezes criarem-se alarmismos que são infundados.
Tem escrito imenso sobre as negociações no âmbito do protocolo de Quioto. Aliás, em 2004 foi premiado pela Associação Portuguesa de Energia. As notícias sobre Quioto em Portugal passam basicamente por dizer: “nós estamos a portar-nos mal”. Que diferença é que isso faz, que impacto tem sobre as pessoas? Acho que incomoda. Ser ministro do Ambiente e ver todos os dias no jornal que Portugal não está a cumprir o protocolo de Quioto fá-lo ficar incomodado. Mas que isso estimule uma pessoa que está num cargo de responsabilidade política a tomar atitudes mais coerentes ou mais sérias para tentar mudar a situação depende muito do próprio político. Não é uma notícia de jornal que vai mudar as convicções de uma pessoa que está no poder. Mas tem uma influência sobre a opinião pública. As pessoas sabem o que é que está a acontecer. Não apenas nas alterações climáticas. Quando um ministro diz “eu cumpri 90 medidas pelo ambiente” e depois o jornalista mostra que, daquelas 90, metade não são nada, isso é importante. E na área das alterações climáticas acho que é importante dizer que Portugal se está a “portar mal”, mas também que a culpa não é apenas do Governo. A culpa é de todos nós.
Recordo-me de uma afirmação de um alto responsável governamental dos EUA, na altura em que estava a ser negociado o protocolo de Quioto, em 1997. “A poluição das águas e os resíduos ainda vemos, são palpáveis. Mas as alterações climáticas...” Sempre que há um episódio extremo as alterações climáticas tornam-se palpáveis, como a onda de calor de 2003. Essas situações podem ser um mero acaso, mas são um exemplo de fenómenos extremos que podem acontecer com cada vez maior frequência. Com o aumento do nível do mar, há milhares de ilhas que vão desaparecer. Os furacões do Caribe provocaram milhares de mortos. É fácil ver o que as alterações climáticas vão trazer no futuro. Mas são coisas que não se resolvem num ciclo político de quatro anos. O político pode optar por acções mais imediatas, como acabar com as lixeiras, ou por fazer alguma coisa em relação às alterações climáticas, acção cujo impacto só se fará sentir quando ele já morreu.
Quais são, na sua opinião, os meios de comunicação que melhor servem o jornalismo de ambiente? Cada meio tem a sua forma própria de comunicar. Acho que a imprensa escrita dá mais margem de manobra. Na televisão temos um ou dois minutos para explorar um assunto. Seja uma maré negra ou outra notícia. Na imprensa tem-se o dia inteiro para pensar naquilo, pode ter-se mais espaço. Não se apaga um jornal. Pode ser lido no dia seguinte. Pode-se usar elementos gráficos, infografias, o que é muito importante.
No livro “Sobre a Terra” refere-se às universidades como boas fontes de notícias de ambiente. As universidades portuguesas são boas fontes de informação? Há sempre muita coisa que surge das universidades, mas talvez seja um meio ainda pouco explorado. E tem de ser uma relação bilateral, até porque por vezes os especialistas das universidades podem simplesmente não querer veicular as informações ou os resultados dos seus estudos. Tenho a impressão de que a universidade anda a comunicar mal. O esforço tem de ser feito pelo jornalista, tentando ir a congressos científicos, por exemplo. Como por exemplo o caso da dieldrina, que surgiu de uma apresentação feita por um investigador num congresso científico, não foi nada que tivesse resultado de uma conferência de imprensa. É assim que se vai ganhando contactos e entrando no meio.
Também chama a atenção para a necessidade do jornalista não confiar cegamente em tudo o que dizem as associações ambientalistas. Há que fazer um esforço suplementar para olhar com alguma distância para as mensagens que são veiculadas pelas associações ambientalistas. A tendência é considerar que, se uma pessoa defende o ambiente, só pode estar certa. Só que há casos em que os dados em que as pessoas se fundamentam não estão correctos. Convém evitar uma visão parcial que coloca de um lado “os bons” e do outro “os maus”.
O facto dos organismos oficiais não estarem tão imediatamente acessíveis não contribui para isso? Nem sempre é assim. Pode ser difícil pedir para consultar um processo e consegui-lo em tempo útil, por exemplo, mas esse direito é algo que está previsto na lei e tem de ser reclamado. Os dados da precipitação, recolhidos pelo Instituto de Meteorologia, são dados públicos, e o cidadão tem direito a ter acesso a eles. Antes pedia-se a informação e no dia seguinte estava-se a receber. Agora não, há que pedir uma autorização superior e muitas vezes não se tem acesso aos dados em bruto, porque acabam por ser transformados num comunicado de imprensa.
Algo que geralmente não é muito bem visto pelo jornalista é uma fonte pedir-lhe para ver o texto antes de ser publicado. Qual é a sua atitude perante essa situação, tendo em conta que a área do ambiente exige lidar com dados técnicos? Há pessoas que pedem, mas eu nunca faço isso. Não o faço porque confio no meu trabalho. Há especialistas que não gostam de ver dados técnicos traduzidos numa linguagem mais simples, que eventualmente possa ser mais ambígua. Mas é preciso ter presente que não escrevemos só para as nossas fontes, mas para o público em geral. Depende muito do jornalista. Há quem faça isso, o que por vezes acaba por ter um resultado útil. Mas eu até agora tenho preferido assim.
Porque é que as publicações exclusivamente dedicadas ao ambiente têm vindo a desaparecer em Portugal? As pessoas não compram. Eu desconfio muito da suposta preocupação dos cidadãos em geral com o ambiente. É uma coisa que aparece muito nos inquéritos. As pessoas dizem que estão muito preocupadas, mas se depois for a ver o que elas fazem, não fazem nada. Não são sócias de organizações ambientalistas, não separam o lixo em casa... Aquilo que as pessoas dizem e aquilo que fazem são duas coisas completamente diferentes. É essencialmente um problema de mercado, lê-se pouco em Portugal e as pessoas compram poucos jornais. Ou a revista especializada é muito boa, como a “National Geographic”, com um grupo grande de leitores, ou se for um produto que surge nas bancas apenas, não vai encontrar compradores.
Mas em contrapartida há cada vez mais jornalistas a escrever sobre ambiente, não é verdade? Há sobretudo cada vez mais jornalistas que se vêem obrigados a escrever sobre essa área, em qualquer redacção. Basta ver o caderno Local do “Público” ou do DN. Metade das notícias têm a ver com ambiente, têm a ver com lixeiras ou descargas de poluição para a água, como os esgotos das suiniculturas de Leiria...
Um dos objectivos da Associação de Repórteres de Ciência e Ambiente (ARCA), que foi criada recentemente e de que é um dos fundadores, é promover acções de formação para jornalistas. O que é que está previsto? Tencionamos organizar em breve duas acções sobre temas ambientais fortes. A primeira delas será em princípio sobre alterações climáticas, e o objectivo é dotar o jornalista de capacidade para explicar o B-A BA da ciência das alterações climáticas, dos fenómenos atmosféricos, como funciona o mercado de carbono e o comércio de emissões. E queremos ter jornalistas a dar algumas pistas de como se pode abordar melhor estes assuntos.
Porquê associar as áreas da ciência e do ambiente? São muito próximas. Em qualquer tema de ambiente temos a ciência como pano de fundo. Se há uma descarga de uma suinicultura para uma ribeira, há sempre uma parte técnica que tem a ver com a poluição da água, com a medição de parâmetros, o impacto que pode ter na saúde e nos recursos. Nas alterações climáticas mais ainda. Aí entra mesmo a ciência pura, e também questões do foro político.
Carla Gomes QUERCUS Ambiente nº. 13 (Março/Abril de 2005)