“Nós até estamos confortáveis com aquilo que não é bom”
Livia Tirone fala da sua empresa, a Tirone Nunes, da sua experiência em várias grupos de trabalho europeus e dos seus projectos, como o Parque Oriente, um quarteirão sustentável que “vai marcar a construção mediterrânica”. Tudo isto tendo como cenário a própria Torre Verde, no Parque das Nações, que a Tirone Nunes projectou.
Entrevista a Livia Tirone, arquitecta bioclimática Que mais-valias oferece o bioclimático ao consumidor? A principal mais-valia é o conforto, coisa que nós não temos. As nossas casas no clima mediterrâneo são piores que o clima. Quando está frio estão mais frias, quando está quente, estão mais quentes. Não é que não nunca tenhamos sabido construir bem, esquecemo-nos foi disso. Foram-se perdendo algumas técnicas e, neste momento, o impacto dos edifícios no Ambiente é de 40% da energia consumida a nível dos países da OCDE, não para os construir, mas para os manter.
E em Portugal, temos uma média de crescimento de quase 4% ao ano, nos consumos de energia dos edifícios… Em Portugal temos um crescimento bastante elevado porque cresceu a capacidade de compra de conforto, e a única forma que temos de o fazer é artificialmente, ligando ou desligando os aquecimentos ou o ar-condicionado. Também temos uma política terrível com uma mensagem errada: 5% de IVA sobre a nossa factura energética e 19% sobre o isolamento térmico, ou seja, uma mensagem que diz “consumam energia, não isolem”.
Como surge a Tirone Nunes e a que se dedica? A Tirone Nunes foi criada em 1989 e não foi nossa intenção inicial embarcar na área promocional. Queríamos fazer projectos de arquitectura de construção sustentável e de construção bioclimática, mas quando nos apercebemos que não havia mercado para este tipo de produto, tornáramo-nos promotores. Achámos muito interessante a relação directa com o mercado, pois permite não só termos a informação que precisamos para criar o projecto certo e, portanto, responder às necessidades de mercado, mas também ter uma relação a longo prazo com o cliente. O reflexo disso é que 59% da segunda torre que fizemos, a Torre Sul, foram adquiridos por amigos das pessoas que vivem aqui na Torre Verde. Quando se vive num edifício bioclimático, não se quer ir viver para uma casa que não seja, porque se sabe o que se vai sofrer.
Que tipo de conceitos definem a arquitectura bioclimática? Não há um estilo que a defina. Podemos desenhar janelas redondas, quadradas, triangulares, desde que haja respeito pelas necessidades que nos transmite o engenheiro térmico. Toda a relação entre o edifício e o espaço exterior é calculada, porque sabemos como se comportam o sol e o clima. Isso é o ponto de partida. Em Portugal temos um pouco aquela postura de que o arquitecto é um artista - e isto é verdade -, e tem de trabalhar isolado dos outros. O pedestal que é criado para o arquitecto é um obstáculo cultural para a implementação de uma arquitectura mais sustentável, porque não podemos separar as áreas do projecto. Foi difícil incutir esta cultura de diálogo e de equipa tanto nos arquitectos como nos engenheiros. Mas, voltando à questão, há elementos para reconhecer a arquitectura bioclimática. Um alçado sul de um edifício bioclimático, por exemplo, nunca é idêntico ao alçado norte, pois há uma relação com o sol no lado sul e uma relação com a luz indirecta no lado norte, logo, a expressão em termos de áreas envidraçadas é diferente. Mas, a mais-valia do bioclimático é um valor acrescentado, mas não justifica jamais o preço ser mais elevado.
Isso também tem limitações. Numa cidade não podem estar todos os edifícios com as janelas viradas para sul… Absolutamente. Mas podemos ter edifícios bioclimáticos com janelas para Nascente, para Poente e para Sul. Deve-se é evitar fogos de habitação com janelas só a norte. Não podemos tirar o direito ao sol a alguém. De resto, a cidade é feita de malhas e temos de nos encaixar nelas. O projecto que vamos lançar brevemente, é o Parque Oriente, um quarteirão sustentável, que não só implementa um conjunto de outras medidas inovadoras na área da construção sustentável, como por exemplo, um sistema de produção de energia. Também iremos tratar do recurso água de uma forma muito inovadora. Com base em tecnologia dinamarquesa, vamos reciclar águas cinzentas para reutilização em sanitas, máquinas de lavar, regas e lavagens de espaço exteriores. É um quarteirão aberto que incorpora um conjunto de medidas replicáveis à escala da cidade.
A arquitectura bioclimática é indissociável do uso de energias renováveis? A energia renovável do sol é nossa aliada directa. Temos de orientar bem o edifício, para sul o mais possível, quando temos essa possibilidade, e dimensionar bem as áreas envidraçadas para nascente e para poente para ter a certeza que não há sobreaquecimento. Nas energias renováveis, recorre-se não tanto à vertente passiva, de que estou a falar, mas à vertente activa, através de painéis solares térmicos, que aquecem a água quente doméstica, ou o fotovoltaico. Este último não se encontra nos nossos projectos porque não queremos fazer as medidas exemplares. Apesar de muito desejáveis, se não funcionam em termos da sua relação custo-beneficio não entram nos nossos projectos. Queremos criar exemplos que sejam replicáveis.
O Programa Água Quente Solar, por exemplo, direcciona-se mais para quem já tem casa e não propriamente para quem promove ou para quem constrói, ou não? Não, dá para tudo porque, por exemplo, contempla também a obrigatoriedade da pré-instalação das tubagens para o sistema solar em edifícios com mais de um fogo habitacional, para poder ser um dia implementado o sistema solar, e essa pré-instalação tem um custo. Quando foram pela primeira vez lançados os painéis solares térmicos, não houve acompanhamento técnico. Eram orientados para todo o lado e depois, evidentemente, as pessoas começaram a pensar muito mal dos painéis solares térmicos porque gastavam mais energia do que antes para aquecer a sua água quente de consumo. Na prática, o que estava a aquecer a água era a resistência eléctrica instalada no reservatório do painel.
Até que ponto é que a Directiva para o Desempenho Energético dos Edifícios se reflecte na melhoria da arquitectura dos edifícios portugueses? A directiva é muito importante. Penso que vai mudar completamente o perfil do nosso sector da construção. Não há outra hipótese. No fundo, o que vai acontecer é que por um lado a Comissão Europeia diz que temos de quantificar o desempenho energético dos edifícios, por outro lado os Estados-Membros estão a ser convidados a criar metas para este desempenho. O consumidor final, ele próprio como fiscal, vai dizer: “Agora posso escolher entre um edifício com um bom desempenho energético ou um com um menos bom desempenho energético”.
Como é que poderá ser a adaptação dos empresários a esse tipo de exigências? Vai ter muito a ver com o que obriga a mudar quando as pessoas estão confortáveis e nós até estamos confortáveis com aquilo que não é bom. É sempre duro mudar. Temos de ter um conjunto de incentivos que ajudem a implementar positivamente os passos relevantes para alcançar a melhoria no desempenho energético dos edifícios. Mas só provando que os passos são essenciais e que não temos maneira de fugir a eles. Também tem a ver o Protocolo de Quioto. Temos de ter consciência que não podemos continuar a abusar do nosso planeta. Podemos avançar só quando somos obrigados a isso, daqui a dois anos ou daqui a três, ou podemos avançar já.
Mas neste momento a nível nacional ainda há poucos incentivos… Há uma oportunidade muito grande de os criar no âmbito da revisão dos Planos Directores Municipais. É possível desenvolver uma visão de Ambiente mais qualificada, mais concreta, em vez de ser só aquela atitude: “Não toquem no Ambiente”. Isto é um pouco aquela visão que não ajuda ninguém. Por outro lado, devem ser criados incentivos muito simples. As câmaras demoram anos com processos para justificar que falta uma vírgula e, depois, os processos demoram anos em vez de meses. Se reduzirmos a burocracia, já é um incentivo forte. Outro incentivo simples é reduzir as taxas a quem à partida reduz impactos nas infra-estruturas municipais ou, se o projecto tem efectivamente estas características – bioclimática, redução no consumo de energias, água, etc. –, a autarquia pode oferecer maior área de construção. Temos de ir por todas as vias.É um processo criativo, de diálogo.
Então as autarquias têm um papel importante na promoção destas construções… As autarquias têm um papel importantíssimo. No ano passado presidi a um grupo de trabalho da Comissão Europeia sobre “Sustainable Construction Methods and Techniques”, cujo relatório final que elaborámos já foi aceite pela Comissão, e estamos muito contentes com o resultado. O documento foi elaborado por um grupo de trabalho de vinte e tal pessoas, das quais dez peritos europeus na construção sustentável e cinco representantes de cinco direcções gerais europeias. É a primeira vez que se desenvolve uma visão integradora e horizontal a nível do ambiente urbano. Os relatórios finais resultaram num documento chamado “Our thematic strategic for govern environment”, que será a base de todas as directivas de Ambiente Urbano a definir a partir de 2005. Foi um trabalho muito interessante, que nos permitiu concluir que as câmaras são efectivamente um dos mais importantes actores, porque têm um poder enorme perante o promotor e perante o projectista. Se as câmaras colaboram com a passagem da construção sustentável à prática comum, temos muito mais probabilidade de termos sucesso.
Esse trabalho internacional surge devido à visibilidade que a Tirone Nunes foi ganhando? E tem alguma articulação com as entidades oficiais? A Tirone Nunes tem a visibilidade que tem, e foi isso que fez com que nós fossemos subsidiados em vários projectos pela Comissão Europeia. A Ordem dos Arquitectos (OA), por causa dessa visibilidade e experiência, convidou-me a participar no Conselho de Arquitectos da Europa (CAE) e depois para presidir a um grupo de trabalho, onde tivemos que reagir a uma série de documentos que estavam em elaboração na Comissão Europeia. Um dos documentos foi a Directiva para o Desempenho Energético dos Edifícios e a nossa postura foi a criação de um sistema de certificação energética de edifícios e a definição de metas. Não aceitaram as metas, porque acharam prematuro, mas tanto apreciaram os nossos contributos, que me convidaram a presidir a outro grupo de trabalho.. Pensei um pouco sobre isso porque foi um número brutal de horas de trabalho voluntário, mas foi um privilégio porque se trabalha com equipas interessantíssimas da vanguarda Europeia, quer em termos técnicos, quer em termos estratégicos.
Esse trabalho implicou contactos com as entidades oficiais de cada país? Não. Não somos obrigados a fazer isso e não seria justo porque eu estou lá por convite da OA, representando-os no CAE. A minha função é uma função técnica e aí é pessoal. O feedback nacional é uma área que me preocupa porque é complicado conseguir tempo para, além do trabalho europeu, investir no trabalho nacional. Deveria poder inventar esse tempo, mas, sem dúvida, a nossa actividade é outra. E já essa é muito ambiciosa. Não estamos a fazer o “business as usual” de vender meias…
Tendo em conta a sua experiência a nível europeu, como vê a Europa de hoje relativamente ao desenvolvimento sustentável e ao urbanismo? Acho que a Europa tem problemas parecidos com Portugal, nomeadamente a aposta no curto prazo. Também existe, por exemplo, nesta “Thematic Strategy on the Urban Environment”, a postura do imediatismo comum a todos os que pensam numa estratégia de “quero ganhar mais votos.” Mas, acho muito mais interessante o trabalho a nível internacional, que todo este mundo da mesquinhez. Tivemos muitas reuniões de “brainstorm” interessantíssimas, uma coisa difícil de alcançar a nível nacional, porque há todo o tipo de situações que distraem as mentes. Poder sair do contexto de não pensar no dia-a-dia e pensar no que verdadeiramente queremos de mudança é muito interessante.
Qual é o relacionamento deste trabalho com a Ordem dos Arquitectos? Existe um grupo de trabalho na Ordem, o “Núcleo Ambiente”, com o qual tenho um contacto quase mensal, em que faço um ponto da situação do que está a ser feito a nível Europeu. Depois, há um acompanhamento dentro da própria Ordem, entre o Conselho Directivo da Ordem e esse grupo de trabalho, mas são ligações um pouco mais frágeis. Por isso é que me critico um pouco pelo facto de não ter tempo para comunicar mais.
Voltando à arquitectura bioclimática, a nível de restauro de edifícios, também é possível implementar as mesmas características? Infelizmente não temos grande currículo nessa matéria, porque há um risco superior em pegar num edifício existente e recuperá-lo. Mas é uma área muito importante porque enquanto que em cada ano um ou dois por cento do parque urbano é construído de base, 98 a 99% estão para recuperar. É uma área importantíssima e onde se pode fazer muita coisa.
Têm encontrado em Portugal o tipo de tecnologias que necessitam? Tudo cá. A Tirone Nunes só faz aquilo que é possível fazer dentro do país. Tem de ser eficaz. Não vamos buscar à China uma coisa para depois o projecto já não poder ser replicado por qualquer um.
O ambiente sempre foi visto um pouco à margem do betão. Como é que desenvolveu a ligação entre estas duas partes ás vezes tão contraditórias? Quando vamos construir, temos de construir num sítio onde se possa construir. No caso do Parque Oriente, é uma fábrica têxtil que ficou em desuso nos últimos anos. Pegar num terreno que é um terreno ex-industrial e transformá-lo num terreno urbano é um ponto positivo. Se me diz que vou fazer um grande empreendimento no meio do parque natural Sintra-Cascais, não me sinto motivada para isso. Mas prefiro não falar nisso, porque não são decisões que possamos julgar. A estratégia é muito mais importante do que uma postura reactiva. As câmaras não deviam reagir, deviam concentrar-se muito mais nos seus recursos e pensar estratégias. A nível governamental também.
Como reage ao crescimento em altura, depois do polémico projecto do Nova Almada e de outros mais recentes? A cidade de Almada teve uma conquista que foi a Requalificação da Frente Ribeirinha Nascente, a que chamou a Almada-Nascente, ainda em desenvolvimento. Respeito imenso esse processo. De resto, honestamente, tudo o que sejam dedos no ar são um pouco gestos de “aqui estou, reparem em mim!”. Não me identifico muito com essa necessidade pessoal, mas também acho que uma cidade não se estraga se for pontuada por alguns elementos verticais. O mais importante é uma abordagem de integração, é perceber o que é que aquela malha precisa, perceber o que é que as pessoas precisam.
Quais são os próximos projectos da Tirone Nunes? A Tirone Nunes não é uma grande empresa mas quer realizar grandes projectos. O projecto em que estamos neste momento a focar todas as energias é o Parque Oriente. É um projecto que vai marcar a construção na faixa mediterrânica. Vai ser a solução que melhor se pode ter neste momento, em termos de “business as usual”, com a implementação das tecnologias disponíveis na área da construção sustentável. Se tudo correr bem, vamos criar um centro para a construção sustentável, onde a monitorização de todos os consumos globais no empreendimento será disponibilizada de forma contínua e permanente. Pretendemos mostrar o que é que se consegue alcançar com todas as medidas implementadas na prática.
Andreia Gomes e Luís Galrão QUERCUS Ambiente nº. 5 (Março/2004)