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Entrevistas
“Não aprendemos a lição com o Verão de 2003”
Manuel Costa Alves pode ser hoje considerado um pai da meteorologia em Portugal. E uma figura chave na mudança que aproximou esta disciplina da protecção civil. Em entrevista ao Quercus Ambiente, o especialista lamenta que a memória das tragédias não dure muito e não ensine o país a prevenir os riscos. Alguns perigos, como as ondas de calor, continuam a ser quase ignorados. E ainda nem passou um ano desde que vivemos uma das mais sérias da nossa história.

Entrevista a Manuel Costa Alves, meteorologista
Depois do Verão quente do ano passado, e dos incêndios que consumiram 400 mil hectares de floresta portuguesa, acha que este ano estamos mais preparados para enfrentar o que vier?
O primeiro-ministro disse que iríamos aprender a lição, mas eu acho que a lição não foi aprendida. A comoção geral de assistir a um espectáculo daqueles implicaria que o país todo estivesse agora envolvido num projecto de reabilitação e reordenamento da floresta e a nível da protecção civil, que manifestou muitas falhas. Mas chegamos a Março e não há um projecto comum, que toda a gente possa seguir.

Talvez tenhamos a memória curta?
Não temos razões para isso. Não é a primeira vez que o país é atingido por impactos desta natureza. Recorde-se em 1998 os grandes fogos, inadmissíveis. Houve fogos que levaram dez dias a apagar, como o de Mação. Eu estava em Lisboa e dentro do Instituto de Meteorologia era quem tratava da ligação à protecção civil - uma inovação que surgiu após a tempestade de 5 de Novembro de 1997 no Alentejo, que provocou 13 mortos. Esquecemo-nos de 1995, em que arderam quase 200 mil hectares. 1991, um mês de Agosto tremendo, um dos anos de onda de calor, com mais de mil mortos.
Eu penso que, do ponto de vista do método, o país e o serviço nacional de protecção civil nunca viram as ondas de calor como geradoras de duas frentes de catástrofes. Uma os incêndios, outra o aumento da mortalidade e da morbilidade. Estou farto de dizer que a onda de calor no nosso país é, desde o terramoto de 1755, a catástrofe natural com maior número de vidas humanas atingidas. A onda de calor mais próxima em que houve a preocupação de fazer alguma coisa foi a de 1981, em Junho. Teve efeitos visíveis muito mais marcados que esta de 2003, porque não assistimos como em 1981 a hospitais cheios de gente, a cemitérios lotados, a casas mortuárias que já não tinham como ter mais pessoas. Foram 1906 mortos. Houve distritos onde a mortalidade duplicou. Na altura, foi publicado um estudo numa revista médica por Mário Falcão, que é delegado de saúde em Cascais e que viveu isso na pele, e ninguém ligou. Só o descobrimos em 1999, andava eu a organizar um simpósio sobre a influência do clima na saúde humana, que era o tema do dia meteorológico mundial nesse ano.

Já existia o sistema de previsão ÍCARO?
O Instituto Ricardo Jorge já tinha o Projecto ÍCARO [Importância do Calor: Repercussão sobre os Óbitos], já o tinham trabalhado para ser um modelo de previsão de óbitos para a grande Lisboa (e ainda está só para a grande Lisboa). A partir desse ano passámos a juntar-lhe a previsão das temperaturas para os três dias seguintes. Estávamos a caminho da elaboração de um plano de emergência para as ondas de calor. Mas nunca chegou a ser feito. Existe apenas o Plano Branco do Ministério da Saúde, e este é claramente um assunto de protecção civil. Pelos dados que o ministério deixou transpirar calcula-se que nesta onda de calor cerca de metade das pessoas morreu em casa. Tal como em França, o que denota uma mudança da forma de vida e de funcionar das cidades.

Em França a reacção social às mortes foi muito mais expressiva.
Em França a sociedade acorda para este problema pensando muito mal de si própria. “Vamos para férias e deixamos os nossos idosos sozinhos”. Em Portugal estamos no mesmo caminho, embora ainda tenhamos relações de maior proximidade com os familiares idosos.

Chegamos a 2003, a uma nova vaga de calor, sem plano de emergência, portanto?
O sistema não estava armado para pensar que uma onda de calor produz duas frentes de calamidade. Não está armado nas estruturas decisórias e na capacidade técnica geral que não possui para enfrentar situações de grande exigência.

Até que ponto as circunstâncias meteorológicas da última onda de calor foram excepcionais?
Esta onda de calor foi de facto a mais intensa e a de maior duração dos últimos 50 anos. Isso é indiscutível, e comparativamente com a de 13 a 25 de Julho de 1991 e de 10 a 19 de Junho de 1981 foi realmente mais extensa e mais intensa.

Mas estes fenómenos extremos têm vindo a ocorrer com maior frequência?
O conhecimento ainda não é suficiente. Se a ONU ou a União Europeia perguntarem ao Governo português, quais foram, nos últimos dez anos, as catástrofes naturais que ocorreram no país e os seus efeitos, económico-financeiros por exemplo, não temos uma resposta. Não temos sequer uma base de dados de causas e efeitos de fenómenos adversos. Outros países, como a Espanha e a França, têm capacidade de consultar os impactos e as principais situações que originaram efeitos desde a Idade Média. Em 1998 foi proposto que se fizesse uma base de dados. Até hoje ainda está por começar.

Defendeu que os fogos de 2003 deveriam ser usados como base de estudos e de futuras previsões.
E espero que se esteja a trabalhar a sério sobre a vigilância por satélite, por exemplo. Eu vi os fogos através de imagens em bruto via Internet, através de um sítio que disponibilizava as imagens do satélite norte-americano NOAA, com uma resolução de 100 hectares. Porque é que um fogo se desenvolve claramente de nordeste para sudoeste, apesar de algumas frentes laterais? É o vento geral que o orienta, e é possível prever o seu comportamento, através de um modelo. Temos muito trabalho científico pela frente. Tenho passado a vida a gritar: temos de injectar ciência no sistema. E não andarmos apenas atrás do fogo.

Levanta estas questões precisamente no ano em que o tema do Dia Meteorológico Mundial (23 de Março) é “a meteorologia na era da informação”.
É possível trabalhar muita coisa no domínio comunicacional, mas em relação às incidências na saúde pública era necessária uma campanha muito bem estruturada, com muitos técnicos de várias áreas. Não apenas um aviso na televisão para salvar a consciência…

Até que ponto é que as próprias pessoas têm a preocupação de ouvir os avisos? Existe uma cultura de protecção civil em Portugal?
Em 1998, em conversa com o responsável máximo da protecção civil, falei-lhe dos impactos do calor e do frio, e ele respondeu: “neste clima moderado!?” Mas ele foi visitar o serviço de protecção civil nos Estados Unidos. E a pergunta que lhe fizeram foi: “lá no vosso país de que origem são as catástrofes que matam mais?”. E ele pôs-se a adivinhar: ciclones, tempestades de Inverno. Não, eram as ondas de calor e as ondas de frio. Não é só a população que liga pouco aos impactos das ondas de frio e de calor. O ministro da saúde ignorou as mortes por excesso de calor. Agora oficialmente são 13, porque há 13 certidões de óbito que referem o excesso de calor como a causa da morte. A nossa medicina também não tem suficiente conhecimento dos impactos das ondas de frio e de calor.

Que medidas podem ser adoptadas para minimizar o fenómeno?
A forma de fazer cidades tem de ser alterada. Temos de ser muito exigentes na política de construção e nos materiais que utilizamos. A primeira coisa que um arquitecto tem de saber é olhar o sol, e ver onde é que a energia está. Não se pode construir em Castelo Branco como em Lisboa. Temos um Inverno muito frio e um Verão muito quente. Se não criarmos espelhos de água e espaços verdes na proporção das construções não contribuímos para diminuir a temperatura e aumentar a humidade. Nas ondas de calor as pessoas não têm descanso, continuam a ter altas temperaturas dentro de casa quando lá fora já está mais fresco. Só nos últimos anos é que se verifica esta tendência, até mais por razões estéticas. Em muitas casas passa-se mais frio do que na rua.

Tinha proposto a criação de um instituto de meteorologia em Castelo Branco. Como é que ficou esse projecto?
Eu tinha proposto à Governadora Civil que Castelo Branco se especializasse na monitorização dos impactos do excesso de calor e de frio, tanto nos aspectos de resposta imediata como na previsão estratégica. Havia instituições universitárias dispostas a entrar nesse projecto. Mas estava dependente do apoio que viesse de Lisboa, e que não veio. A ideia era ter aqui na região um instituto que recolhesse dados para serem trabalhados em Lisboa. Aquilo que Lisboa envia para o interior são previsões gerais, que não estão adaptadas à realidade de cada região.

A ideia era também poder usar o conhecimento meteorológico em benefício das actividades económicas da região?
Uma das ideias era fazer um modelo da evolução do ciclo de vida da fruticultura da Cova da Beira. Eu acredito muito neste tipo de actividade. Estou farto do país das grandes metrópoles e acho que temos de apostar no desenvolvimento das cidades pequenas.

Acha que as potencialidades da tecnologia estão a ser devidamente aproveitadas na meteorologia?
Seguramente que não. Houve alguns avanços na protecção civil e na meteorologia e na relação entre as duas. Até 5 de Novembro de 1997 essa lacuna estava claramente à vista. As previsões meteorológicas eram enviadas para o serviço nacional de protecção civil e depois para a comunicação social e para o ministério. Eram duas instituições sem ligação operacional, até 1998. Nesse ano a informação passou a ser objecto de estudo pelas duas partes. Esta articulação era pioneira a nível mundial.

Tem dito também que somos bons no socorro mas maus na prevenção…
Somos. Mas depois também não sabemos tirar as lições devidas. Em Entre-os-rios fizemos as juras que fizemos. Já não tínhamos memória dos Invernos, do que tinha acontecido em 95 e 96, já não nos lembrávamos de 89 e 88, 83, 77. Pelo menos 400 pessoas morreram em Odivelas nas cheias desse ano. Estamos centrados no socorro, somos bons, generosos e voluntários, mas prevenir não. Não temos a tal base de dados de efeitos de casos extremos. Se tivéssemos essa memória isso orientar-nos-ia a reduzir as nossas vulnerabilidades. Durante muito tempo dizia-se que os deslizamentos de terras e a instabilidade de vertentes, no nosso caso, não tinham grande importância. Mas depois aconteceu a Ribeira Quente, em 1997. E nós não estivemos a fazer peritagens em zonas de grande risco, entretanto. Quando aconteceu estivemos lá, fizemos o nosso luto. Temos muito bons sentimentos, não temos é bons sentimentos estratégicos.

Há uma expressão que nascemos a ouvir, mas que a maior parte das pessoas não sabe bem o que significa. O que é afinal o anti-ciclone dos Açores?
Os nossos antepassados não sabiam que o anti-ciclone dos Açores existia, mas reconheciam os seus sintomas. O anticiclone dos Açores é um centro de circulação atmosférica de altas pressões. Existe uma cintura de anti-ciclones no hemisfério Norte e Sul, que funcionam como centros de comando que regulam as altas pressões. A acção dos anti-ciclones está associada a um determinado tipo de tempo, gera aquecimento e diminuição das condições para que haja condensação, já que o vapor de água sai da terra mais quente, e vai arrefecendo.

Está estudada a influência do aquecimento global do planeta em fenómenos como esse anti-ciclone?
Ainda não sabemos o que vai acontecer ao anti-ciclone no processo de aquecimento global. Mas é muito provável que com o aquecimento global nós passemos a ter uma frente quente intertropical e uma frente fria polar, e é esta diferença de temperaturas que activa a circulação atmosférica. Se essa diferença se altera, vamos passar a ter uma circulação atmosférica menos rápida e menos forte. Ou seja, nos verões, maior frequência das ondas de calor e das suas duas frentes de calamidade. A Primavera diminuiu claramente nos últimos trinta anos em relação aos anos anteriores. A primavera que era a segunda estação em extensão ao longo do ano em 1961, passou a ser a terceira, depois do Outono.

O que é que ainda significa neste momento o Protocolo de Quioto, com todas as limitações e todas as cedências e dificuldades que foram criadas durante este processo?
A possibilidade de conseguir que os norte-americanos venham a entrar no processo, mantê-lo e tentar cumprir alguma coisa. Alguma coisa há-de mudar. Mas mesmo tão tímido e complacente, se não houvesse protocolo de Quioto era pior.

Prevê-se que Portugal ultrapasse as metas de Quioto em 14 por cento até 2010…
Portugal não está mobilizado para coisa nenhuma. Portugal podia aproveitar o protocolo de Quioto para rever toda a sua política face à utilização de energia. Passar a dimensionar os seus investimentos para as energias alternativas e passar a construir os edifícios de outra maneira.

Mesmo que deixemos de emitir gases com efeito de estufa, o nível das águas e a temperatura da atmosfera vão continuar a aumentar, não é verdade?
Nós não estamos em condições de conhecer um conjunto de fenomenologias oceânicas porque muitas delas têm uma escala temporal de revelação de centenas de anos, como as alterações de salinidade e das correntes aos vários níveis de profundidade, e a interacção com a atmosfera. Existe o centro de vigilância do El Niño no Equador, mas num oceano tão ocupado em termos de transportes, como o Atlântico, não temos dados acumulados que nos permitam conhecer esses mecanismos. E a maioria dos fenómenos extremos na Europa tem a maior parte da explicação em anomalias que se geram no Atlântico Norte.

Portugal tem um papel activo na investigação da oceanografia, ou estamos a perder o barco também?
Temos apetência para isso, mas não a temos aproveitado. Historicamente temos todas as condições e temos alguns bons especialistas nesta área.

A Organização Meteorológica Mundial tem promovido alguns projectos de monitorização no Terceiro Mundo, com uma ligação ao desenvolvimento das actividades económicas, nomeadamente da agricultura.
A partir dos anos 80, com a eleição de um nigeriano para secretário-geral da OMM, passou a dar-se muito mais relevância aos problemas do chamado Terceiro Mundo. Sobretudo em África, há uma grande movimentação social provocada pelas independências que se esperava que respeitassem muito mais os modos de vida das populações. Havia divisões culturais muito fortes que foram esmagadas, submetidas aos interesses de uma pequena maioria, com uma evolução frenética para um capitalismo selvagem que não tinha fundamentos no fervilhar daquela sociedade.

África tem sido especialmente penalizada pelo drama da desertificação.
Grande parte da desertificação é humana, e tem a ver com más intervenções no território, como a sobrepastorícia e a sobrepovoação em ecossistemas que são muito frágeis. Enquanto África não conseguir entender-se a si própria e perceber que não tem de imitar a nossa democracia, o estado de coisas não se altera. Durante a existência dos “não alinhados” ainda se pensou que eles seriam capazes de oferecer ao mundo uma outra lógica de evolução…

Esteve a trabalhar como meteorologista em Timor Leste entre 1973 e 1974. O que guarda dessa experiência? Não está a pensar voltar?
Logo a seguir à libertação houve um movimento para que se iniciasse a instalação da meteorologia na ilha. Houve uma interrupção das séries meteorológicas, que vêm desde princípios do século XX. E a ideia era preservar as que já estavam feitas. Mas não passou de uma tentativa. O jogo das prioridades depois começa a funcionar e não foi possível avançar. Havia inclusive a expectativa de Timor aderir à organização mundial no congresso do ano passado. Mas para isso o país tinha de cumprir com determinadas obrigações. Estava tudo previsto, com prazos marcados, e pessoas destacadas. O tempo passou e o que sei é que a estação meteorológica ainda não está a funcionar em pleno. Não há ainda um grande esforço de implantação. Se em Timor fosse dada importância a um serviço nacional de protecção civil logo à nascença era capaz de se conseguir uma boa integração. E existem riscos no território, sobretudo sísmicos. O meu problema é saber o que vai acontecer aos 95 por cento da população que vive no interior sem as condições mínimas, face à modernidade dos outros cinco por cento. Para onde vai ser orientado o investimento?

Carla Gomes
QUERCUS Ambiente n.º 6 (Abril/2004)
 
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