“Se queremos ter um impacto real temos de seguir o dinheiro”
Dirige o Programa Internacional da Environmental Defense, uma das maiores e mais importantes Organizações Não Governamentais de Ambiente dos EUA. Há 10 anos escreveu um livro sobre os impactes ambientais das políticas e projectos apoiados pelo Banco Mundial. Desde então nunca mais deixou de seguir o rasto do dinheiro.
Bruce Rich, Director do Programa Internacional do Environmental Defense
Há quase 10 anos escreveu “Mortgaging the Earth”, uma obra muito crítica sobre as políticas e projectos apoiados pelo Banco Mundial (BM). Hoje continuam a existir razões para escrever um livro semelhante?
Bem, os problemas mudaram. Nesse livro escrevi um capítulo chamado “Decade of Debacles”, sobre a década de 80, quando o Banco concedia empréstimos para financiar projectos altamente destrutivos, como enormes planos de “colonização agrícola” nas florestas tropicais da Indonésia e do Brasil, ou grandes barragens que implicavam a deslocação de milhares de pessoas. Ao longo dos anos o Banco adoptou normas e procedimentos ambientais mais fortes e exigentes, assim como políticas sociais sobre povos indígenas e habitats naturais, por exemplo, as chamadas “safeguard policies”, que são cerca de dez. Adoptou também uma política de acesso à informação mais aberta. Hoje consegue-se ter acesso a bastante mais informação, mesmo antes da aprovação de alguns projectos, assim como a toda a documentação sobre determinado projecto após a sua aprovação. Trata-se sem dúvida de uma situação muito mais transparente do que a que acontece com as Agências de Crédito à Exportação (ECA, do inglês Export Credit Agencies), apenas para dar um exemplo. E o Banco também deixou de financiar alguns dos projectos mais desastrosos, como os grandes planos de colonização de floresta tropical no Brasil e na Indonésia, por exemplo. Parece também ter saído do financiamento a grandes barragens, e digo parece, porque há sinais perturbantes de que planeia voltar a participar em alguns destes projectos.
Mantém-se, então, a crítica que fazia no livro, de que o Banco contradiz alguns dos seus próprios princípios?
Pelo menos agora o Banco tem princípios ambientais para contradizer, o que já é um passo em frente (risos). Ou seja, o primeiro passo na reforma de uma instituição é torná-la hipócrita. Creio ter feito esta observação no encontro promovido pela Euronatura sobre as ECA. Durante alguns anos estas agências nem sequer foram hipócritas, nem sequer alegavam fazer qualquer esforço em matéria ambiental ou social, ou ter qualquer tipo de transparência. A partir do momento em que começam a dizer que já têm essas directrizes ambientais e sociais, aí já é possível analisar o seu desempenho prático e acusá-las de hipocrisia. Isso já é um passo em frente (risos)...
Mas essas normas ambientais nem sempre são seguidas?
Existem uma série de políticas ambientais em vigor que, se fossem realmente implementadas em cada projecto, já seria bom. O problema é que em muitos projectos e financiamentos o Banco continua a não as implementar. Há enormes pressões dentro do banco para que se continue a investir dinheiro e a ignorar as preocupações ambientais, porque estas atrasam os projectos ou complicam os processos. Recentemente, no livro “Reinventar o Banco Mundial”, publicado pela Universidade de Cornell há cerca de um ano, escrevi um capítulo sobre os anos de presidência de Wolferson, onde basicamente digo que ele o tornou pior (risos). Houve alguma esperança quando ele entrou, muitos pensaram que iria reformar o Banco, prometeu tudo a todos, mas acabou por ser um mau administrador. O resultado é que a pressão para emprestar dinheiro, para aprovar e conceder os empréstimos, não implementando as salvaguardas ambientais, tornou a situação pior em alguns aspectos. Actualmente vemos um novo desenvolvimento preocupante, de que a velha guarda do Banco, nem toda se reformou ou morreu, infelizmente (risos), tem estado à espera e agora lança uma contra-revolução, podemos dizê-lo, tentando fazer o banco recuar alguns anos e recomeçar a apoiar os grandes projectos, como barragens, etc. Chamam-lhe a abordagem do “grande risco, grande recompensa” (high risk, high reward). Os defensores desta ideia defendem que estes grandes empreendimentos com riscos ambientais, económicos e sociais elevados, são os que maior desenvolvimento originam. Mas a prática mostra não ser de todo o caso, basta perguntar às populações afectadas por estes projectos. Por isso penso que o Banco está meio reformado, de um ponto de vista optimista, porque já não faz algumas das coisas que costumava fazer e já tem um conjunto de políticas que acabam por ser um precedente importante para outras organizações internacionais...
A que atribui essa evolução? À pressão da sociedade civil organizada?
Sim, embora nunca seja uma resposta fácil. Na sua história oficial dos 50 anos, uma publicação que acabou por sair um ou dois anos atrasada - como os projectos do Banco (risos) - existe um capítulo sobre ambiente. O documento analisa as campanhas das ONG nos finais da década de 80 e início de 90 sobre os grandes projectos e diz, basicamente, que foi a pressão das ONG nos EUA e um pouco por todo o mundo que levou às reformas, que o Banco não atingiria tão depressa nem de forma tão profunda sem essa pressão. Ou seja, uma coisa é a minha opinião, outra é eu poder suportar a minha opinião citando a história oficial do próprio Banco.
E quando é que o Bruce decidiu dedicar-se a este tema?
Bem, eu formei-me em Direito. Em 1981 cheguei a Washington com vontade de trabalhar sobre algo internacional e público. Foi aí que tomei contacto com as questões ambientais, primeiro no NRDC, e depois na Environmental Defense, já em 1985. Na altura ajudei a criar um departamento internacional e ao longo dos anos foi possível contratar um punhado de pessoas muito empenhadas e talentosas, como a Korinna Horta [que colabora também com a Euronatura]. É um programa pequeno mas muito eficaz nas matérias em que trabalha. Ainda nos primeiros anos em Washington trabalhei também como consultor de algumas organizações internacionais, como a UNEP [Programa de Ambiente das Nações Unidas] e até para o próprio Banco Mundial, durante cerca de dois meses, realizando alguns relatórios em Washington. Fui também consultor da USAID [Agência de Cooperação e Ajuda Humanitária], WWF, WRI e outros, o que me deu imensa experiência.
Que dimensão tem o Programa Internacional da Environmental Defense?
A Environmental Defense tem cerca de 250 funcionários, em sete ou oito escritórios nos EUA. A sede é em Nova Iorque, mas existe também um grande escritório em Washington, onde eu trabalho. O Programa Internacional é um pequeno departamento, com 6 profissionais dedicados às questões do ambiente e desenvolvimento, sobretudo dos países em vias de desenvolvimento com economias em transição. A nossa abordagem centra-se em duas vertentes relacionadas: uma é o trabalho com as associações e grupos locais, investigando e aconselhando em situações relacionadas com grandes investimentos com efeitos adversos no ambiente, tentando influenciar e mudar esses projectos. A outra vertente tem sido ir atrás do dinheiro, tentando influenciar os principais fluxos financeiros internacionais, públicos e privados, que financiam grandes projectos e programas de desenvolvimento.
E porque escolheu o Banco Mundial como alvo?
Na década de 80, achei muito deprimentes as primeiras conferências internacionais em que participei. Nas reuniões eram apresentados dados assustadores, mas depois não acontecia nada. Nessa altura apercebi-me que era necessário seguir os trilhos do dinheiro para perceber porque é que as coisas não funcionavam, sobretudo o dinheiro das instituições de Bretton Woods, o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e os outros bancos multilaterais de desenvolvimento, as instituições que realmente têm o dinheiro e a influência. Por isso participei nas primeiras campanhas, que juntaram ONG um pouco por todo o Mundo, contra grandes projectos como o Narmada Sardo Sardovar, na Índia, o Plano de Transmigração na Indonésia, e os grandes planos de colonização e construção de estradas na Amazónia.
Essas instituições de que falou têm um papel no Desenvolvimento Sustentável?
Sim, negativo pelo menos têm tido... (risos). Mas há muito a fazer. No sector da energia, por exemplo, em vez de apoiar projectos com grandes impactes ambientais (barragens, centrais a carvão, etc), podem desempenhar um papel importante no apoio a programas de eficiência energética e de poupança de energia. O problema é que como este tipo de projectos não envolvem grandes somas de dinheiro nem permitem o envolvimento das grandes empresas de construção, por exemplo, nem sempre interessam...
E como se poderá processar essa mudança?
Através da pressão política, porque os argumentos económicos são claros neste caso, existindo inclusive diversos estudos sobre os benefícios das políticas de eficiência energética e de poupança de energia. O Banco deve apostar nesta área em países como a China e a Índia, por exemplo.
Recentemente, um conjunto de Bancos privados, elaborou e decidiu implementar voluntariamente um conjunto de directrizes ambientais, chamadas de “Equator Principles”. Como vê esta medida?
É um importante passo em frente. Esses 18 bancos adoptaram basicamente as políticas do Banco Mundial, relacionadas, por exemplo, com a avaliação de impacte ambiental, o respeito pelos povos indígenas, a protecção de habitats, etc. E exigem o seu respeito como requisito para o financiamento de projectos em países em vias de desenvolvimento. E estes 18 bancos, que incluem o ABN Amro, o Barclays, o Citigroup e o Crédit Lyonnais, são responsáveis por cerca de 80% do financiamento internacional de projectos. É um importantíssimo passo no sentido do compromisso. E é muito interessante que se tenham inspirado nas normas do Banco Mundial.
Mas por enquanto são apenas princípios, não sendo fácil a sua implementação.
Sim, a questão da implementação permanece em aberto mas é um desafio importante. De qualquer forma, creio que os Bancos nem sequer se aperceberam sequer do tipo de ferramentas que irão necessitar para implementar estas políticas. Há que trabalhar nesse sentido.
Que importância é que esse tipo de normas poderá ter para um país pequeno, como Portugal?
No caso de grandes projectos, como a barragem do Sabor que está a ser contestada pelas ONG, financiados ou co-financiados pelo sector privado, é provável que um destes bancos esteja envolvido tendo, por isso, de seguir esses princípios. Ou seja, é uma nova ferramenta de pressão para quem procura influenciar estes projectos e é importante porque revela que num projecto nem todos têm os mesmos interesses: do proponente, passando pelas empresas de construção civil, até às entidades financiadoras. É seguindo o fluxo do dinheiro que se pode de alguma forma influenciar as decisões.
Cada IFI tem o seu conjunto de normas ambientais, umas mais desenvolvidas, outras menos. Seria importante seguirem todas as mesmas normas? Seria importante para esta, como para outras matérias, a criação de uma Organização Mundial do Ambiente?
É uma questão importante, embora a criação de uma instituição dessas não seja, na minha opinião, uma boa ideia, dado que já temos a UNEP, que é relativamente inútil. Mas também já foi criada para ser assim, com orçamento reduzido, com a sede em Nairobi e sem grande capacidade para desenvolver projectos próprios. De qualquer forma, as normas e salvaguardas do Banco Mundial têm vindo a tornar-se, de facto, a base mínima aceitável, ou seja, se fossem cumpridas seria um passo muito importante. Os próprios bancos que subscreveram os “Equator Principles” guiaram-se pelas normas do BM porque perceberam que não era necessário reinventar a roda. O problema, actualmente, são as Agências de Crédito à Exportação, porque na prática são agências públicas ou que gerem garantias públicas, mas escandalosamente estão cada vez mais atrasadas na implementação de normas ambientais. A maioria das ECA, e a COSEC é um bom exemplo disso, não são transparentes nem têm compromissos sérios. Dizem que implementaram as recomendações da OCDE, nomeadamente as “Abordagens Comuns”, mas esse documento aprovado há dois anos e entretanto em fase de revisão, é tão mau que até os EUA votaram contra, também por causa da nossa pressão. É um fenómeno conhecido por “Quioto invertido”, porque os EUA se recusaram a assinar um acordo multilateral por ser demasiado fraco [ao contrário do Protocolo de Quioto sobre Alterações Climáticas, que os EUA não assinam por considerarem demasiado ambicioso]. Ao fazê-lo criaram uma pressão que culminou agora com a renegociação do documento.
Mas a COSEC, à semelhança de outras ECA mais pequenas, diz não ter condições para aplicar as mesmas normas das ECA maiores. Como responde a esta questão?
É uma desculpa esfarrapada. Qualquer ECA, incluindo as mais pequenas, têm de exigir aos proponentes dos projectos que realizem um Estudo de Impacte Ambiental. Além disso, estou certo que a International Finance Corporation (IFC), o braço privado do Banco Mundial, estaria disponível para prestar assistência técnica às ECA nesta matéria. Além disso, podemos analisar o exemplo de outros países. A ECA Australiana (EFIC), por exemplo, adoptou procedimentos ambientais que devem actualmente ser os melhores no seio das ECA. Têm normas de transparência, de análise de impacte ambiental e social, etc. Se eles o conseguiram fazer, e a EFIC não é uma grande ECA, também a COSEC o conseguirá.
A COSEC argumenta que uma das razões pelas quais os EUA defendem mais transparência destina-se a permitir às empresas americanas “roubarem” os negócios às empresas europeias...
(Risos) Nesse caso, a COSEC (e a Tutela) deve questionar-se porque é que um conjunto de bancos privados internacionais, que não são certamente os mais “sentimentalistas” do mundo, decidiram empenhar-se no cumprimento dos “Equator Principles”, entre os quais está a transparência. Além disso, se os clientes da COSEC fossem pedir empréstimos às agências internacionais, nomeadamete à IFC, teriam certamente de seguir uma política de transparência mais exigente. Que sentido faz que enquanto o sector privado, a banca privada e o Banco Mundial concordaram em ter uma política de transparência, as ECA, entidades públicas ou que gerem garantias públicas, continuam a ser as únicas a achar que a transparência é um problema... Quanto ao argumento dos segredos comerciais, a COSEC deve saber que há empresas privadas de informação que compilam e organizam informação sobre os projectos em todo o mundo, e as companhias que investem nestas áreas analisam estes dados... Esse tipo de argumentação é ingénuo, ignorante ou uma combinação de ambos...
Como classifica o papel das diferentes redes de ONG a trabalhar nas diversas instituições financeiras internacionais?
O que é mais gratificante é que há cada vez mais pessoas a trabalhar nestas questões. A recente campanha sobre o Banco Europeu de Investimento (BEI), por exemplo, é de extrema importância, porque este Banco multilateral é um dos piores, se não o pior, em termos de transparência. Há inclusive um tendência estranha na Europa, sobretudo em relação aos projectos na Europa de leste, em que quando o Banco Mundial recusa apoiar um projecto, sobretudo por ser economicamente frágil, o Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento (BERD) fica com ele. E quando o BERD recusa, então o BEI entra em acção (risos). De qualquer forma, precisamos de mais gente a trabalhar nesta área. Na Europa, em particular, perde-se muito tempo em reuniões e convenções, como nas Cimeiras das Nações Unidas, mas no final pouco resultará desse esforço. Exemplo disso é a Conferência do Rio. Por isso, se queremos ter um impacto real temos de seguir o dinheiro. Num mundo cada vez mais economicamente globalizado, onde se pode realmente ter influência é nestes fluxos financeiros internacionais, públicos e privados, porque são vulneráveis à pressão.
E que papel poderá ter um país como Portugal nesse trabalho?
Fiquei impressionado com o profissionalismo das pessoas que encontrei, na Euronatura e na conferência da Associação Portuguesa de Engenheiros do Ambiente (APEA), que me pareceram ser mais esclarecidas que a maioria das pessoas com quem trabalho nos Estados Unidos (risos)... Parece-me haver em Portugal o capital humano para fazer a diferença em termos internacionais. Nas reuniões da OCDE, por exemplo, muitas delegações acabam por não falar muito, dado ter os EUA por um lado, a favor de mais reformas, e a Alemanha por outro, contra. Nos últimos anos a Espanha tem aparecido mais, mas com uma posição retrógrada. É por isso importante que a campanha ECA Iberia consiga fazer com que as pessoas da COSEC e dos Ministérios desempenhem um papel mais activo nessas reuniões
Como americano como vê a política ambiental dos EUA?
Essa pergunta também surgiu no encontro da APEA. Obviamente que 95% dela é um desastre, um embaraço e um pesadelo. Contudo, nada é sempre 100% bom ou mau, excepto na cabeça de George Bush (risos)... até esta administração, provavelmente porque sente que necessita de ter uma ou duas áreas em que possa dizer que os EUA são bons. Uma delas são as novas normas em relação ao gasóleo recentemente apresentadas pela Environmental Protection Agency. A nível internacional, sobretudo nesta matéria das ECA, os EUA também tem desempenhado um papel importante, especialmente por motivos competitivos, porque a ECA americana tem normas mais exigentes.
Mas o Export-Import Bank (EX-IM), a ECA americana, esteve próximo de apoiar o polémico projecto de gás natural de Camisea, no Peru. Como conseguiram as ONG convencer o EX-IM a recuar?
A Environmental Defense preparou uma análise detalhada de como o projecto e o seu impacte ambiental flagrantemente violavam as normas ambientais do EX-IM. Distribuímos essa informação ao mesmo tempo que outras ONG trabalhavam, noutros aspectos. Depois pressionámos a administração do EX-IM, que é composta apenas por três pessoas: o presidente, Republicano, e duas pessoas nomeadas - uma mulher (aparentemente uma ex-namorada de George Bush), também republicana, e um democrata. O presidente votou a favor, o democrata contra a e a mulher, na realidade, conseguimos convencê-la a votar contra. Apesar de estar sob uma tremenda pressão conseguimos demonstrar-lhe que tínhamos razão, porque caso o apoio fosse concedido, as normas do EX-IM não valeriam nada.