Hélder Spínola foi eleito há seis meses como Presidente da Quercus. Na primeira entrevista ao Quercus Ambiente, conta como está a decorrer o mandato e quais as suas principais preocupações e objectivos para a Associação.
Entrevista a Hélder Spínola, Presidente da QuercusComo está a ser a experiência de presidir uma das maiores ONGA do país? Mais do que uma experiência, presidir à Quercus é um enorme desafio que requer muita dedicação, não só do presidente, mas de todos os elementos da Direcção. A Quercus é realmente uma associação que atingiu já uma dimensão considerável e a sua gestão requer uma atenção muito especial à sua estrutura interna, por forma a dotá-la das condições necessárias para dar resposta às solicitações, cada vez mais frequentes, da sociedade portuguesa. Desde que fui eleito tenho procurado desenvolver os mecanismos mais adequados para revitalizar internamente a Associação. O grande desafio que coloco a mim próprio neste mandato é o de conseguir estruturar a Quercus de forma a estar preparada para enfrentar os desafios que o futuro nos reserva.
O facto de residires na Madeira dificulta essa tarefa? Sem dúvida que o meu desempenho seria muito mais fácil se eu residisse em Lisboa. No entanto, residir na Madeira não dificulta mais a minha tarefa do que se eu residisse no Algarve ou em Trás-os-Montes. Apesar da Quercus estar praticamente “obrigada” a marcar uma presença forte em Lisboa, por razões óbvias, é uma associação de âmbito nacional que possui estruturas em todo o território, incluindo nas Regiões Autónomas da Madeira e dos Açores. Apesar do inconveniente em termos mediáticos de estar distante da capital, o facto de residir na Madeira possibilita-me uma visão mais abrangente e equidistante sobre as diferentes estruturas que compõem a Quercus.
Fazes parte da equipa do Centro de Estudos da Macaronésia da UMa, onde te encontras a realizar o doutoramento na área da genética humana. Em que consiste esse trabalho? O meu programa de doutoramento iniciou-se já em 1999 e consiste no estudo da diversidade genética da população portuguesa, com particular destaque para a população madeirense. Este trabalho, que inclui também populações africanas, tem por objectivo conhecer os diversos contributos genéticos que fazem parte hoje da nossa população e faz uso de um conjunto de genes do Sistema HLA (Human Leucocyte Antigens). Estes genes não são apenas importantes para estudos populacionais, mas revestem-se de particular interesse na área da saúde, nomeadamente para o transplante de órgãos.
O Governo Português pretende construir um radar na ilha da Madeira num espaço de nidificação (Pico do Areeiro) de uma ave endémica e em perigo de extinção, a Freira da Madeira (Pterodroma madeira). O projecto tem vindo a ser contestado por várias ONGA, nomeadamente pela Quercus. Conseguirão as ONGA impedir o projecto ou alterar a sua localização? Infelizmente este é mais um exemplo de como não é dada qualquer prioridade à conservação da natureza em Portugal, apesar dos inúmeros alertas regionais, nacionais e internacionais. As preocupações apresentadas relativamente à ameaça que esta infra-estrutura poderá representar para o estado de conservação desta ave marinha ganham cada vez mais consistência e apoio, o que associado à duvidosa necessidade deste radar militar, poderá ser fundamental para um retrocesso neste processo. Só o futuro dirá se conseguiremos evitar esta clara violação ao princípio da precaução.
O que vai mal na Conservação da Natureza em Portugal? Pelo elevado valor do património natural existente no nosso país, caracterizado por uma enorme riqueza faunística e florística, a conservação da natureza assume-se como uma vertente fundamental na defesa do ambiente. Apesar de possuirmos no país diversas áreas protegidas, que encerram inúmeras espécies com necessidades especiais de conservação, não têm sido garantidos os necessários mecanismo de preservação de todo esse património. Quando muitos planos de ordenamento das áreas protegidas ainda são inexistentes e os responsáveis por essas áreas facilitam os interesses particulares em detrimento da conservação da natureza, não podemos esperar muito desta actividade. É necessário garantir rapidamente que, relativamente aos ecossistemas e espécies mais sensíveis, sejam desenvolvidos os mecanismos necessários, independentemente da pressão de determinados lobbies, para garantir a sua preservação. Não podemos continuar com esta situação em que a conservação da natureza aparece em último lugar na lista de prioridades.
No Dia Nacional da Conservação da Natureza, assinalado a 28 de Julho, a Quercus propôs a criação de um observatório para a gestão das áreas protegidas. Em que medida é que a criação de mais um organismo poderá contribuir para melhorar a situação actual? Face à forma displicente com que têm sido geridas muitas das áreas protegidas em Portugal, muitas vezes numa perspectiva simples de gestão corrente, e tendo em conta a necessidade de abrir à sociedade a participação nesta temática, a criação de um observatório desse tipo daria um grande impulso na implementação de medidas concretas de conservação da natureza. Esse observatório seria uma excelente forma de garantir que nas Áreas Protegidas é realmente desenvolvida Conservação da Natureza e não apenas os interesses particulares de municípios ou indivíduos. Dada a proximidade entre alguns responsáveis pela Conservação da Natureza e os interesses meramente económicos existentes em determinados locais, é imprescindível a existência de um organismo tecnicamente e socialmente bem constituído e equidistante dos diversos interesses locais.
O recente alerta, através de um programa da RTP, para a situação do tráfico de espécies exóticas em Portugal, bem como a denúncia de uma trágica operação de apreensão de animais por parte do ICN, trouxe para a opinião pública dois problemas: a quase total impunidade de quem trafica animais selvagens e a trágica falta de meios e de preparação por parte das entidades fiscalizadoras. Como se poderá sair deste cenário? Certamente que a disponibilidade de meios faz uma grande diferença na eficiência de actuação de qualquer organismo público ou privado. Quando faltam as condições ideais de trabalho é frequente os organismos públicos preocuparem-se apenas com a gestão corrente e deixarem de parte o desenvolvimento de novas medidas e mecanismos para solucionar os problemas à sua responsabilidade. Provavelmente é o que estará a passar-se com o ICN e os casos relatados pela RTP poderão ser uma consequência dessa falta de motivação e esmorecimento face à degradação das condições de funcionamento. Os responsáveis máximos pelo funcionamento do ICN não podem cingir a sua actuação a uma simples gestão superficial deste importante Instituto. Deverá ser desenvolvido um conjunto de mecanismo que garantam e facilitem o adequado desenvolvimento de determinados serviços prioritários. O combate ao tráfico de animais selvagens deverá sem dúvida ser reenquadrado legalmente por forma a poder contar com uma maior intervenção de outras entidades actualmente responsáveis pelo combate ao tráfico em geral.
A Quercus tem vindo a denunciar diversas situações (suiniculturas, ozono, ar, CFC), umas devido ao seu impacte ambiental, outras relacionadas com o contínuo incumprimento da legislação, incluindo das Directivas Comunitárias. As denúncias da Quercus têm resultados ou caem em saco roto? As denúncias da Quercus têm sempre resultados. Algumas vezes conseguimos provocar alterações imediatas nas políticas dos governos e noutras situações apenas aumentar o conhecimento e a sensibilidade da sociedade portuguesa para as mais diversas questões ambientais. Vale sempre a pena o esforço e a dedicação desenvolvidos por esta Associação. De uma forma mais ou menos imediata, com maiores ou menores consequências, o nosso trabalho é reconhecido por toda a sociedade e tem sido fundamental para as alterações que temos constatado em Portugal ao longo das duas últimas décadas.
Este ano, os portugueses assistiram impotentes à destruição de mais de 400 mil hectares de floresta pelos incêndios. O que falhou? A calamidade que se abateu sobre a floresta portuguesa no decorrer deste último Verão não foi consequência apenas de um ano de desleixo para com os nossos espaços florestais. No entanto, para além de tudo aquilo que tem vindo a ser regra nas últimas décadas, sob a responsabilidade de sucessivos governos, este ano houve um conjunto de falhas ao nível da vigilância e do combate que potenciou a proporção atingida pelos fogos florestais. Se dúvidas havia, relativamente a esta situação, na primeira grande vaga de incêndios, no princípio de Agosto, elas foram completamente eliminadas quando, já em Setembro, o SNBPC foi novamente apanhado de surpresa com o agudizar da situação e a destruição de extensas áreas de floresta. A sociedade portuguesa, desde os governantes até ao cidadão comum, tem descurado a necessidade de restringir o uso do fogo junto aos espaços florestais. Quando o país ardia e as imagens de destruição eram abundantemente transmitidas pelas televisões, muitos portugueses insistiam em continuar a fazer queimadas, lançar foguetes e fazer fogueiras na floresta. Isto reflecte a profunda falta de sensibilização que, apesar de tudo, ainda existe no nosso país relativamente à necessidade de proteger a floresta.
O que é possível fazer para evitar situações semelhantes nos próximos anos? Antes de mais é necessário mudar a perspectiva com que a floresta portuguesa tem sido encarada pela própria sociedade. É necessário valorizar estes espaços nas mais diversas perspectivas ambientais, sociais e económicas. Para além desta consciencialização social, e enquanto não conseguimos obter uma floresta mais resistente aos incêndios, o que poderá demorar algumas décadas, teremos de apostar muito na vigilância, fiscalização e na proibição do uso do fogo junto a estes espaços naturais. Enquanto não conseguirmos diminuir o elevado risco de incêndio que caracteriza a nossa floresta, será fundamental tomar uma atitude forte para garantir que o fogo se mantém longe da floresta.
Esteve recentemente em consulta pública uma primeira fase do Plano de Implementação da Estratégia Nacional de Desenvolvimento Sustentável (PIENDS). Um grupo de ONG, entre as quais a Quercus, reagiu criticamente aos documentos e, sobretudo, ao processo do PIENDS. Quais os motivos destas críticas? Contrariamente às garantias assumidas pelo Primeiro Ministro no decorrer da Cimeira de Joanesburgo, o prometido Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável caiu no esquecimento e o processo de elaboração do PIENDS não teve o envolvimento da sociedade civil. Este divórcio entre o Governo e a sociedade civil, no decorrer da elaboração do PIENDS, tem consequências negativas sobre a sua qualidade, tendo resultado num documento sem visão futura e pouco concreto relativamente aos seus objectivos, metas e acções. Desta forma, o PIENDS padece dos mesmos males da Estratégia Nacional de Desenvolvimento Sustentável, pelo que a falta de uma calendarização, associada à inexistência da necessária identificação dos recursos imprescindíveis para a sua implementação, poderão condenar mais este documento a uma qualquer gaveta esquecida deste governo.
Que estratégia defendem as ONG, de Ambiente e de Desenvolvimento, para o PIENDS? O PIENDS terá, acima de tudo, de ser um documento muito concreto. Pouca, ou nenhuma, utilidade terá mais um plano para não concretizar. Por isso, é fundamental que no desenvolvimento deste documento se consiga envolver a sociedade, a qual terá, depois, um papel fundamental na sua implementação. Para além de um conjunto muito concreto de medidas a implementar, com vista a tornar mais sustentável o nosso desenvolvimento, o PIENDS deverá ser acompanhado por um conjunto bem definido de indicadores que reflictam as verdadeiras consequências do esforço desenvolvido. O PIENDS deverá também ter o dinamismo necessário para garantir a adopção das medidas adequadas consoante os resultados obtidos através desses indicadores.
Como vês esta parceria entre ONG de Ambiente e de Desenvolvimento? O casamento não poderia ser mais feliz. Estas parcerias são extremamente vantajosas e completam-se mutuamente. Julgo que de ambas as partes tem existindo uma absorção de conceitos e conhecimentos fazendo com que cada vez mais as ONG de Ambiente estejam mais próximas das de Desenvolvimento e vice-versa.
E o actual momento do movimento ambientalista em Portugal? Nalguns aspectos está um pouco estabilizado, principalmente no que diz respeito à renovação dos seus intervenientes. As caras do movimento ambientalista continuam a ser as mesmas e isso pode ser mau a médio/longo prazo para a manutenção da pujança do movimento. É preciso renovar e integrar mais elementos novos nas associações. Apesar da Quercus manter uma actividade invejável na defesa do ambiente, este momento do movimento ambientalista encontra maior desenvolvimento e expressão nas associações e movimentos locais que se criam em torno de uma causa específica. É um fenómeno interessante que parece resultar fundamentalmente da maior consciência ambiental da sociedade e da necessidade de defender a qualidade de vida de determinadas comunidades que se vêem ameaçadas pelo desenvolvimento insustentável.
E como classificas a actuação do actual Ministro do Ambiente e do seu Ministério? Apesar da manifesta falta de curriculum na área do ambiente, o actual Ministro tem demonstrado alguma abertura para integrar nas suas políticas algumas ideias apresentadas pela Quercus. No entanto, este Ministério não tem conseguido afirmar as questões ambientais na agenda política nem conseguiu proporcionar outro dinamismo e eficiência na resolução dos problemas ambientais, demonstrando claramente que não é uma das áreas prioritárias deste Governo. Falta uma actuação mais exigente e forte da parte do Ministro e é preciso desenvolver uma postura mais enérgica face à necessidade de impulsionar os diversos dossiers ambientais que teimam em não avançar.
Qual é a tua visão sobre o papel desempenhado pela Quercus? A Quercus tem desempenhado uma função muito importante na sociedade portuguesa. Apesar das dificuldades inerentes à falta de meios que caracteriza sempre qualquer associação sem fins lucrativos, o trabalho desenvolvido pode ser considerado manifestamente positivo. No entanto, é possível fazer melhor e, acima de tudo, preparar-se para poder ter um melhor desempenho. E isso passa por rever internamente o seu funcionamento e a forma adequada para crescer ainda mais, desta forma estaremos mais capacitados para colaborar na defesa do ambiente e da qualidade de vida das populações.
Na última Assembleia-geral, uma das discussões centrou-se em torno do futuro da Quercus. Enquanto alguns sócios defenderam uma intervenção mais global, sobretudo ao nível das políticas ambientais, outros entenderam que a associação deveria analisar a possibilidade de gerir projectos específicos, sobretudo de conservação. Como te situas neste debate? Julgo extremamente importante desenvolver na Quercus as duas perspectivas, que é o que tem sido feito. Por um lado não nos podemos demitir da nossa função social de alertar para os inúmeros atropelos ao ambiente que diariamente se registam no nosso país e, por outro, é fundamental que possamos concretizar as nossas ideias e assim dar o exemplo à sociedade. Os projectos são valiosos para a concretização das nossas ideias e para uma colaboração mais prática. As duas vertentes devem caracterizar a actuação da Quercus porque constituem a única forma credível de fazer defesa do ambiente. Não podemos fazer apenas intervenção social, nem desenvolver só projectos.
Uma das prioridades saídas dessa Assembleia foi o aumento e o envolvimento do número de sócios. De que forma pensa a actual Direcção atingir este objectivo? Primeiro teremos de criar um outro dinamismo no contacto com os sócios. Nesse sentido, o Jornal Quercus Ambiente desempenha um papel fundamental na aproximação entre os órgãos dirigentes e os sócios. Por outro lado, temos a funcionar também uma lista de correio electrónico de discussão interna que tem já permitido uma maior troca de ideias e informações. A página da Quercus na Internet deverá ser também um importante espaço de contacto interno e externo. Apesar de ser perfeitamente natural que a grande maioria dos sócios não esteja disponível para colaborar activamente na Quercus, porque obviamente têm a sua actividade profissional que muitas vezes preenche todo o espaço disponível nas suas vidas, existem alguns elementos, essencialmente novos sócios, que se disponibilizam para colaborar. Estes voluntários têm de ser desde logo enquadrados nos projectos já existentes ou, quando necessário, devem ser criadas novos espaços de trabalho e colaboração. É imprescindível para a Quercus abraçar e incentivar estes novos elementos pois serão eles a garantia de que este projecto terá sempre continuidade e será capaz de se adaptar às novas exigências e aos novos desafios.
E o reforço do trabalho dos Núcleos? Os Núcleos são estruturas basilares da Quercus. Permitem à Associação estar presente em todo o território nacional e dessa forma dar resposta a inúmeras solicitações que nos são feitas diariamente. Na verdade alguns dos Núcleos necessitam de um maior apoio e incentivo de forma a ultrapassarem as suas dificuldades e apresentarem-se como elementos incontornáveis nas questões ambientais de âmbito local. Nesse sentido, será necessário um maior contacto entre a Direcção e outras estruturas, e os Núcleos. Os que demonstram um dinamismo muito fraco face ao que seria desejável e necessário deverão ser particularmente acompanhados pela Direcção Nacional. Nestes casos será mesmo fundamental garantir um maior envolvimento dos sócios, nomeadamente integrando novos projectos ou mesmo a direcção do núcleo.
A Quercus tem previsto um Congresso para o início do próximo ano, para discutir o caminho futuro da Associação. O que gostarias que de lá saísse? O Congresso previsto para o próximo ano é particularmente importante para reestruturar internamente a Associação e provocar uma nova dinâmica na nossa actividade. Acima de tudo espero que seja um Congresso muito participado, quer na discussão prévia que se pretende realizar quer nos trabalhos a decorrer no próprio dia. Concretamente não tenho nenhuma ideia pré-concebida, pois pretendo estar aberto às diferentes opiniões e ideias que deverão surgir. No entanto, será fundamental que este Congresso abra portas a uma nova Era da vida da Associação, sendo necessário para isso que crie um conjunto de linhas de orientação para diversas temáticas e, acima de tudo, defina uma estrutura interna que garanta um funcionamento mais célere e eficiente.
Redacção QA QUERCUS Ambiente n.º 2 (Outubro/2003)
Hélder Spínola
Nasceu em 1973, na cidade de Lourenço Marques (actualmente cidade de Maputo), em Moçambique, onde os seus pais, naturais da Ilha da Madeira, residiam desde 1968. Com apenas três anos de idade foi para a Madeira, em sequência da descolonização e da guerra civil que se generalizou no país. Concluiu o curso de Biologia (variante científico) na Universidade da Madeira (UMa) em 1996, foi professor do ensino preparatório e secundário nos anos lectivos de 1997/98 e 1998/99 e presentemente está a desenvolver um programa de doutoramento em genética humana. Em 1995, juntamente com diversos colegas do curso de Biologia, foi fundador do Núcleo Regional da Quercus na Madeira, ao qual presidiu até 2000. Em Abril foi eleito Presidente da Quercus – A.N.C.N..