“A única coisa que Portugal espera é que o clima ou S. Pedro ajudem”
José Alho, 42 anos, é um ambientalista veterano que já passou pelas direcções da Quercus, do Parque Natural da Serra D’Aire e Candeeiros e do Instituto de Promoção Ambiental. Presidente da Liga para a Protecção da Natureza (LPN) há dois anos, José Alho faz um balanço do seu mandato e lamenta que os políticos tenham mais perícia em apagar instituições e políticas ambientais do que propriamente fogos.
Entrevista a José Manuel Alho, Presidente da Liga para a Protecção da NaturezaEste ano a vaga de incêndios tem-se sentido de novo, embora não de forma tão dramática como no ano passado. Temos tido sorte ou é um reflexo das medidas entretanto tomadas? A única coisa que aconteceu de diferente no ano passado, foi a dimensão da catástrofe, porque os problemas estruturais que existiam, nomeadamente as condições climatéricas e a desertificação do mundo rural, mantêm-se. Independentemente da catástrofe e do impacto ambiental, social e económico, teve a vantagem de fazer com que um assunto, que já era do domínio público, atingisse uma escala incontornável ao ponto de o poder político ter de dar uma resposta imediata perante a catástrofe. Este ano estamos claramente pior do que estávamos o ano passado e digo isso não por não acreditar em algumas medidas positivas que foram anunciadas mas pelo facto de elas terem sido traduzidas para o terreno já de modo demasiado tardio. É o caso das principais medidas de prevenção. Estamos, infelizmente, a repetir a dimensão, quer nos números de fogos, quer nas áreas ardidas, o que significa que para já nada melhorou. A única coisa que parece que se está à espera em Portugal, dentro também de uma lógica mais fatalista, é que as condições do clima ou S. Pedro ajudem.
No ano passado disse que “das cinzas da catástrofe surgiriam as bases para a reconstrução séria dos bosques portugueses”. Também não foi feito nada nesse sentido? Não. Acredito que há sempre um lado positivo, que penso que não foi concretizado. Nós somos sérios na interpretação que fazemos e uma clara reestruturação da floresta não é algo de curto e médio prazo. Mas, o problema dos fogos florestais resolve-se fundamentalmente não numa questão de reordenamento da floresta, mas passa por olharmos de modo diferente o modelo de desenvolvimento que queremos para o mundo rural. Nada disso foi feito.
O José Alho já é há dois anos presidente da LPN. Como é que está a ser a experiência? Como sabem, não é uma novidade para mim porque durante muitos anos já tinha sido dirigente associativo na área ambientalista. Esta experiência é gratificante, aliás, como eu penso que é gratificante para todos nós que andamos no ambientalismo sentirmos que, por mais pequeno que seja o nosso esforço, estamos a contribuir à nossa escala, mesmo que seja de modo insignificante, para um planeta com futuro. Esse sentimento gratificante serve de compensação por todo o desânimo em que a luta ambientalista se traduz no dia-a-dia porque, infelizmente, dão-nos quase sempre razão à posteriori e de modo irreversível. Um caso concreto foi a problemática dos resíduos, onde os ambientalistas defenderam a política dos três “R’s” e hoje temo-la aí. Perdemos, por exemplo, as batalhas da Ponte Vasco da Gama e do Alqueva, mas contrabalançando com essas perdas efectivas, tivemos grandes vitórias e vitórias que estão aí fazendo parte do nosso modelo de desenvolvimento actual e eu penso que isso é gratificante. Somos pessoas abnegadas que nos entregamos a isto de alma e coração e é gratificante ter isso porque se fosse só o acumular de frustrações, não havia teimosia que resistisse.
A sua experiência à frente do Instituto de Promoção Ambiental (IPAMB) fê-lo encarar de outra forma as relações entre ONGA e Governo? Essa é uma parte difícil de falar sem ser com uma falsa modéstia, mas vou correr esse risco. Penso que o meu exercício enquanto Presidente do IPAMB foi sobretudo um exercício de coerência. Até hoje nunca ninguém me disse que eu como ambientalista defendia uns ideais e enquanto pessoa ligada à administração defendia outros. Hoje continuo a defender que era importante continuarmos a ter em Portugal uma instituição como o IPAMB, que fazia, do ponto de vista do Governo, a ligação entre a sociedade e a administração. Esta ponte era feita, se calhar, sem grande apoteose, porque também era um Instituto com pouca capacidade financeira e pouca capacidade em termos de intervenção política, mas, de qualquer modo, eu vivo convencido de que fizemos alguma coisa interessante na Educação Ambiental, pois conseguimos criar redes de projectos escolares de Educação Ambiental, colocar no terreno professores oriundos das Organizações Não Governamentais de Ambiente (ONGA). A outra área que para mim obviamente era fundamental era a participação dos cidadãos, garantida pelas ONG. É obrigação do Estado apoiar as ONGA. É pena que muita gente nos meios de decisão política se tenha já esquecido disso.
Que leitura faz da extinção do IPAMB? Foi uma tentativa de aniquilar a participação efectiva dos cidadãos. A algumas pessoas com uma visão menos democrática da sociedade não interessou em determinado momento ter uma estrutura que permitisse ter cidadãos aptos e a concorrer de igual para igual com a própria administração. O facto de depois se ter criado o IA já é um outro processo, mas se há alguém que deve ser responsabilizado pela aniquilação da política pública de Educação Ambiental e de participação dos cidadãos foi o Secretário de Estado, que criou as condições politicas para que se fosse mais longe. Quando se fala muito em reestruturação, o melhor mesmo é não fazer nada porque criam-se dinâmicas de destruição sempre com o argumento de se estar a optimizar os serviços. A leitura politica que faço é esta e assumo-a perfeitamente. Aliás, as pessoas que estavam associadas ao processo – posso dizê-lo, porque sempre tive muitas dificuldades no âmbito dessa Secretaria de Estado – tinham alguma irritação com os ambientalistas, ou seja, com a participação dos cidadãos.
Para haver essa participação é preciso que haja alguma maturidade do lado da sociedade civil. Como é que avalia a maturidade do movimento ambientalista? Essa maturidade não é espontânea. O fim do analfabetismo, por exemplo, consegue-se com muito trabalho de formiguinha, anos e anos investidos no sistema de Educação e Portugal ainda não resolveu sequer esse problema. Para conseguirmos estar ao nível dos nossos parceiros mais próximos na própria UE devíamos fazer um esforço suplementar nestas áreas. Se calhar agora já não faz tanto sentido a Educação Ambiental mas a Educação para a Sustentabilidade. No fundo, tudo entronca numa Educação mais geral que é a Educação para a Cidadania. As pessoas entenderem que são cidadãos e que para além dos deveres e dos direitos que têm na sociedade onde vivem têm também de ter algum trabalho no sentido de os garantir em defesa do bem comum. É um tipo de batalha que não se ganha numa geração. Mas, para além de apostar na Educação, é necessário que os cidadãos percebam que os mecanismos que têm de participação são eficientes, e nós na área do Ambiente não temos essa sensação. Se tivéssemos esse entendimento sério em termos de governação do país, certamente ultrapassaríamos aquela leitura que todos fazemos de que os portugueses são cada vez mais individualistas.
Mencionou já algumas batalhas ambientais. Na questão do Rio Sabor ainda acredita que a barragem não irá para lá? Quero acreditar nisso. Acredito que vale a pena continuarmos a lutar porque se não fizermos nada, de certeza vai para lá. Temos de continuar a acreditar na verdade e na seriedade dos nossos argumentos. E para além de todos os outros argumentos que podem ser apresentados contra a barragem do Sabor, há um que eu esgrimo sempre que é a questão da esquizofrenia de Estado, que é termos por um lado um Estado português que propôs a classificação do Vale Sabor como Sítio Natura 2000 no final dos anos 90 e, no passo seguinte, o mesmo Estado, mas numa personalidade esquizofrénica, por isso diferente, vir propor para aquele vale uma obra que é incompatível com o estatuto que propôs a classificação. Isto é um absurdo.
A propósito de ritmo esquizofrénico, como vê a passagem meteórica do penúltimo Ministro do Ambiente, cuja única decisão, para além da questão da Lei da Caça, foi a de avançar com o Sabor? É um triste ministro que ficará na história por, pelo menos numa primeira fase, ter tomado essa decisão. Vamos ver se ela continua ou não. Eu penso que há argumentos até do ponto de vista financeiro não tão fortes como tinha o Alqueva, mas aí era uma promessa que já vinha do tempo do Estado Novo para o desenvolvimento do Alentejo. No caso do Sabor os argumentos que são esgrimidos, que numa primeira fase eram de energia, agora têm de ser de reserva estratégica de água de consumo para ser financiado pela UE.
O Alqueva era um anseio dos alentejanos. O Sabor é um anseio da EDP... E do Presidente da Câmara Municipal de Torre de Moncorvo. Penso que os argumentos são tão ténues que eu acredito que ainda nesta fase haja um processo de reversibilidade. A maior hipocrisia é colocar-se na avaliação de impacto ambiental uma alternativa que não é séria porque o Estado sabia perfeitamente que se optasse pela alternativa do Côa, a Unesco desclassificava o Vale do Côa e o Património Mundial das figuras do Vale do Côa. E penso que também não são tantos os defensores quanto isso.
Como qualifica a prestação do governo cessante em matéria ambiental? Vou-me refugiar na posição que a LPN tem assumido sobre o assunto. Desde que entrou o ministro Isaltino Morais houve uma tentativa clara se subalternização da política pública de Ambiente. Isso foi notório logo pelo simbolismo de atirar o ministério para o final da linha hierárquica dos ministérios. Penso que não foi por acaso também que, tirando o caso do ministro Isaltino, que era um tipo peso pesado do PSD, que os ministros escolhidos não tinham peso político, para além de não serem pessoas que defendessem claramente a camisola do Ambiente. O caso do Dr. Amílcar Theias, uma figura apagada do ponto de vista político, embora bem intencionada, não dominava os dossiers nem tinha força política para afrontar os outros interesses. Mesmo assim, ganhou pontualmente com algumas atitudes corajosas que certamente lhe traçaram o destino, como a forma como afrontou os interesses da agricultura na tutela das áreas protegidas. Já Arlindo Cunha, a primeira coisa que fez foi aprovar a nova Lei da Caça contra toda aquela polémica da Conservação da Natureza, e a decisão do Sabor. Este governo, quer por comparação entre protagonistas quer em termos de acção e propostas governativas concretas, trouxe o Ambiente claramente para o fim da linha e para uma importância relativa muito pequena relativamente às outras áreas da política.
E agora com Luís Nobre Guedes? A tendência vai ser para piorar. Mantém-se uma pessoa que é completamente externa às dinâmicas do Ambiente, quer em termos políticos, quer em termos técnicos e profissionais. Vai perder imenso tempo a inteirar-se dos dossiers, o que é grave porque o país não se pode dar ao luxo de estar a servir de instrumento de formação de políticos. Por outro lado, o facto de ser uma pessoa de clara subserviência ao líder partidário e de o PP ter também o Ministério do Turismo, a par de este governo ser dirigido fundamentalmente para gerir o eleitoralismo das autárquicas e das legislativas durante estes dois anos, não avizinha nada de bom. Isso é bastante grave e preocupante. Outra coisa que não consigo entender, é porque é que uma área política na qual o PSD teve figuras políticas de referência como o Carlos Pimenta ou o António Capucho é dada de barato ao PP, que não tem tradição nenhuma e, ironicamente, na última campanha eleitoral defendia a extinção do Ministério do Ambiente. É todo um cenário que, sem por em causa a capacidade do novo titular, é preocupante.
Este governo criou também o novo Ministério das Cidades, Administração Local, Habitação e Desenvolvimento Regional. Como é que vê a coexistência deste ministério com o do Ambiente e do Ordenamento do Território? Perderam-se dois anos a tentar fazer reorganização de serviços, com novas orgânicas nomeadamente no caso das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) com a integração dos serviços das Direcções Regionais de Ambiente e Ordenamento do Território (DRAOT) dentro destas novas estruturas. E agora vamos voltar a mexer nesta estrutura toda. Com a separação do Ambiente, penso que aquilo que eram os serviços de Ambiente e Ordenamento do Território vão ser novamente desintegrados das CCDR. Isto se não fosse sério até parecia uma brincadeira de mau gosto. E é uma forma de atacar a política de Ambiente e sobretudo do Ordenamento do Território. Os ataques podem vir de acções políticas ou não deixando funcionar, e este é um claro exemplo disso. Aliás, como outro que temos bem presente que é o funcionamento do Instituto de Conservação da Natureza (ICN), que foi completamente esvaziado não de competências, mas de meios financeiros, recursos técnicos e humanos. Parece que tentam provar que as instituições ligadas ao Ambiente não funcionam e se não funcionam têm de se acabar com elas...
Qual acha que vai ser o futuro do ICN? Penso que estão reunidas todas as condições para um dia destes se consumar a sua extinção. Mas o que está em causa é que o ICN ainda tem competências em 22% do território nacional, não de um território qualquer, mas do território mais bonito e mais bem conservado do nosso país. Território que é alvo da especulação através do imobiliário e é isso que está em causa. Tem sido um processo político conduzido de forma cobarde, porque não é explícito. Não é só o caso do ICN, porque anteriormente foi o caso das DRAOT que foram perfeitamente apagadas. Esta atitude mais ou menos cobarde de aniquilar as instituições leva a que interesses menos nobres do ponto do vista do interesse nacional, muitas vezes oriundos dos agentes locais, até de algumas autarquias, consigam ter espaço e consigam dominar. Isto é perfeitamente preocupante e contraditório num país que defendeu perante a Comunidade Internacional que ia ter uma Estratégia Nacional de Desenvolvimento Sustentável. Aliás, isso é um presente envenenado, não por se tornar público pela positiva, mas por conseguir congregar logo um conjunto de contestatários para que o novo governo venha dizer: “Isto é um documento polémico. Criou já anticorpos junto dos opinion-makers ambientalistas. O melhor é acabarmos com isto”. Pode ser uma visão muito conspirativa, mas eu acredito nisso.
O José Alho já passou por várias associações de Ambiente, como a Quercus. Como chegou à LPN? A LPN é um marco do meu percurso, pois foi a primeira associação em que me inscrevi. Na altura até mostrei disponibilidade para abrir uma delegação da LPN porque senti um apelo muito forte a uma intervenção. Essa minha disponibilidade não teve repercussão positiva e entretanto, por razões também de formação, conheci em Coimbra o Armando Carvalho, na altura que estava a formar uma nova associação, a Quercus, e o entusiasmo que ele conseguiu transmitir levou-me a que, desde a primeira hora, eu aderisse. Tive uma forte intervenção associativa na Quercus quer a nível regional quer em termos nacionais, onde fui vice-presidente durante alguns mandatos, até 1995, altura em que a Quercus vivia uma crise de crescimento, na qual eu fui um dos protagonistas ao defender a criação de um corpo técnico para ajudar a Quercus a se estruturar. Entretanto o facto de ter deixado os cargos de dirigente na Quercus permitiu que pudesse responder positivamente a convites que me foram reafirmados. Fui Director do Parque Natural da Serra D’Aire e Candeeiros, o que me deu bastante gozo, fui Presidente do IPAMB e depois regressei ao Parque. Posteriormente, fiquei novamente numa situação de técnico sem ter responsabilidades directivas e houve um convite para dar continuidade ao trabalho da LPN que me honrou muito. Na altura, tive aquela noção de ser uma pessoa marcada em termos públicos pela intervenção na Quercus e isso iria parecer um pouco o estar a passar de camisola, mas a LPN estava no modelo que eu considerava certo em termos de organização e em termos de intervenção. Assumi a responsabilidade da LPN durante estes anos com muito gosto. Em termos de balanço geral entre os sacrifícios e os ganhos, para além do muito trabalho e de muita dedicação que exige, não digo que é positivo mas cria-nos motivação para continuarmos. Isso é o mais importante.